Finalmente, em Carolina, o poeta tenta retirar a amada do estado de tristeza e dor, sacudindo-a da melancolia através de um convite para dançar, mas seus esforços são vãos:
Carolina Nos seus olhos fundos Guarda tanta dor A dor de todo esse mundo Eu há lhe expliquei que não vai dar Seu pranto não vai nada mudar Eu já convidei para dançar
O convite se tornará mais insistente, utilizando o apelo erótico contido nas metáforas da rosa e da estrela:
É hora, já sei, de aproveitar Lá fora, amor Uma rosa nasceu Todo mundo sambou Uma estrela caiu Eu bem que mostrei sorrindo Pela janela, ói que lindo Mas Carolina não viu
"Rosa" e "estrela", nesse contexto, parecem ecoar (provavelmente de maneira inconsciente) na temática amorosa de Chico Buarque dois símbolos quase que obsessivos em Manuel Bandeira, levantados por Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza, no prefácio de a Estrela da vida inteira. Pois em Bandeira, dizem os dois autores, a rosa, herança provável do Romantismo, é ora o corpo da mulher amada, ora a virgindade, ora o próprio sexo, representando o "aspecto mais accessível do amor"; por outro lado, a estrela representa algo fora do alcance da mão.
Na canção de Chico Buarque, também a rosa poderia simbolizar o amor vivido na sua expressão corporal, enquanto que a estrela, nas alturas, simbolizaria o amor espiritualizado. Aqui a rosa nasceu, todo mundo sambou e a estrela caiu: o amor carnal figurado pela rosa provocaria a queda da estrela. Mas Carolina se deixa ficar na janela e, no seu imobilismo, o tempo passa e nada acontece. O poeta mostra rosa e estrela à amada, num urgente "carpe diem" ("É hora, já sei, de aproveitar") provocado pela sensação da passagem inexorável do tempo, mas Carolina nada vê, e o tempo fará o amor acabar:
Carolina Nos seus olhos tristes Guarda tanto amor O amor que já não existe Eu bem que avisei: vai acabar De tudo lhe dei para aceitar Mil versos cantei pra lhe agradar Agora não sei como explicar
Há no poema dois blocos de versos, que se contrapõem num paralelismo cerrado: os versos 9 a 12 (já citados) e 24 a 27:
Lá fora, amor, Uma rosa morreu Uma festa acabou Nosso barco partiu
Esses versos são a negação explícita e imediata dos anteriores:
uma rosa nasceu / uma rosa morreu todo mundo sambou / uma festa acabou uma estrela caiu / nosso barco partiu
Morreu, acabou, partiu: metáforas da finitude. E os versos finais do poema revelam o agente desse desfazimento todo: a passagem do tempo:
Eu bem que mostrei a ela O tempo passou na janela Só Carolina não viu
Passagem do tempo versus imobilismo das personagens é um topos constante da poética de Chico Buarque (como apontou Leila Perrone Moisés em artigo já citado) e que aqui encontra um espaço privilegiado de desenvolvimento.
A passagem do tempo, aliás, acabará por se cristalizar numa metáfora definitiva - a Roda-viva:
........
Mas voltemos a Carolina, que enquanto o tempo passava, tinha ficado à janela. Carolina se transformou quase que num emblema da canção nostálgica por excelência. Melancólica, nostálgica, reacionária, passadista: o fato é que Carolina se transformou na pedra de toque da implicância dos tropicalistas com Chico Buarque. (E não apenas dos tropicalistas.) Essa importância quase emblemática que Carolina vem a assumir, por sinal, é provada pelas "retomadas" sucessivas que se fizeram desse texto. Inicialmente, pelos tropicalistas. Gilberto Gil e Torquato Neto a citam, parodicamente, em Geléia geral:
E outra moça também Carolina Da janela examina a folia (salve lindo pendão dos seus olhos e a saúde que o olhar irradia)
Numa evidente leitura irônica, que "corrige" a melancolia do olhar da moça da janela, contrapondo o vigoroso deboche tropicalista à dor guardada nos olhos fundos.
Caetano também a retoma, numa polêmica interpretação, de 1968, que, malgrado os desmentidos do intérprete, foi largamente utilizada para provar o dissídio entre os dois compositores. Trata-se de uma estilização que tem, evidentemente, um lado crítico, mas que recupera uma dimensão inequívoca de lirismo.
Essa mesma canção é retomada, criticamente, dessa vez pelo próprio autor, em Essa moça tá diferente (do seu quarto disco, o disco da crise), uma canção que manifesta o desencontro que o poeta começara a sentir entre a sua poética e o gosto do público (a moça que "fica diferente"): ... Essa moça é a tal da janela Que eu me cansei de cantar E agora está só na dela Botando só pra quebrar
Mas não param aí as repercussões de Carolina no meio intelectual e artístico brasileiro. O poema No Festival, de Drummond, em meio a várias referências a canções da Música Popular Brasileira da época dos Festivais, privilegia Carolina, que, aliás, abre e fecha o longo poema, do qual cito só os versos que nos interessam:
Na janela Carolina não viu o tempo passar. Eu bem que mostrei a ela: São os do Norte que vêm que vêm para dar exemplo Com Suassuna e Capiba. ... Eu troco o não pelo sim, não tranco o meu coração. E quem será que inventou não só o tempo do amor, mas esse instante de luz que é esperança de aurora sob os líricos auspícios de nosso caro Vinícius? Eu bem que mostrei sorrindo, ó meu amor infinito (infinito enquanto dura) todas as noites do mundo se queres, te quero dar.
Por que a lágrima vã que turvou o teu olhar em canto não se converte noutra estrela da manhã? Bem faz o Chico: se a estrela caiu e murchou a rosa, ei-lo que mostra à janela - Oh que lindo... Carolina meu doce, minha menina, não deixa o barco partir, não deixa a banda passar!
A convocação de Gil/Torquato, Caetano Veloso, Drummond - uma pletora de repercussões a Carolina - não é gratuita: consiste no levantamento de dados que vão construindo a "fortuna crítica" dessa canção e lhe emprestam lastro histórico. É já um aforismo comum da "Estética da Recepção" incorporar a reação crítica que uma determinada obra suscita à atmosfera em que respira e se movimenta essa mesma obra. A reação dos contemporâneos começa a amalgamar-se, num certo sentido, à obra, passa quase a fazer parte da sua existência. E importa assinalar que essas repercussões aqui levantadas, foram, todas, não a nível da crítica (musical ou literária), mas a nível da criação: um diálogo entabulado por outros compositores, por outro intérprete, por outro poeta.
É o caso de nos perguntarmos também por que Carolina revelou-se tão instigante. Na verdade, é uma canção extremamente significativa de um determinado momento histórico: aquele em que uma parcela da intelectualidade brasileira, alijada da práxis política, tende a se refugiar em situações de melancolia e inação: da janela, vê (ou não vê) o tempo passar.
Falei mais acima que Carolina se transformou quase que num emblema da canção nostálgica por excelência. Mas nostálgica é quase que a totalidade da produção de Chico Buarque até 1968, abrangendo as canções dos seus três primeiros discos. E creio que devo cavar mais fundo o significado dessa nostalgia. Nostalgia, bem entendido, no seu sentido etimológico, de ânsia dolorida por um retorno. A maioria das canções da época são a proposta de uma situação - um outro tempo ou um outro espaço - onde não haja sofrimento, e em que as barreiras do individualismo ruem. Esse esconjurar da tristeza é propiciado, como vimos, ora pela dança e pelo canto, em Carolina e n'A banda; ora pela música, em O realejo; ora pelo samba em Tem mais samba e em Olê, olá; ora pelo Carnaval em Noite dos mascarados, Sonho de um carnaval, Amanhã ninguém sabe e Ela desatinou. Em todos os casos, uma constante: a tentativa de superar o curso normal da vida, através da criação de um tempo mítico (convocado sempre, como vimos, por meio de um elemento dionisíaco). Isso significa uma tentativa quase que desesperada de se estancar a passagem do tempo, através do retorno a uma tal situação que provoca provisoriamente a reintegração do indivíduo numa determinada experiência, em que a dor humana é vencida.
No entanto, no quarto disco - aquele em que faz uma revisão da própria poética - Chico Buarque empreende uma crítica à crença no poder de transformação social - provisório que seja - da canção. (ver Agora falando sério) Fonte: Desenho mágico, Adélia Bezerra de Meneses, Editora Hucitec, 1982 Parte I - Lirismo Nostágico, página 55 |